Tecnologia

Direito e tecnologia: Como é liderar o departamento jurídico de uma startup

Em entrevista ao JOTA, Berg Melo, da Incognia, falou sobre como o jurídico ajuda a encontrar oportunidades de negócios

Quando entrou na faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco, Berg Melo não imaginava que trabalharia como advogado em uma startup. Muito menos que, poucos anos após a graduação, já ocuparia o posto de gerente jurídico da Incognia, uma empresa especializada em prevenção a fraudes que tem como clientes bancos, fintechs, e-commerces e grandes empresas de delivery, como iFood e Rappi.

Em entrevista ao JOTA, o executivo contou que hoje sua atuação mescla Direito, negócios e tecnologia, um cenário bem diferente do que ele sonhava para si quando criança ao brincar de ser advogado no Tribunal. Foi só na faculdade que o interesse pelo universo do Direito Digital surgiu. Na época, ele passou a frequentar eventos no Porto Digital, no Recife, um dos principais parques tecnológicos do Brasil, onde conheceu a Incognia.

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Melo diz que, como advogado, vê como uma das principais vantagens de trabalhar em uma startup a possibilidade de influenciar diretamente no negócio. No caso da Incognia, isso significa tanto estudar regulamentações dos mercados em que a empresa atua como aprender a liderar uma rodada de investimento com fundos internacionais.

O grande desafio do jurídico é estar pronto para acompanhar a velocidade de mudança do negócio. O maior exemplo disso veio na pandemia, quando a empresa precisou se reinventar totalmente.

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Em 2020, a startup ainda se chamava Inloco e seu principal produto era uma tecnologia que usava a geolocalização do consumidor para direcionar melhor anúncios de publicidade. Com a diminuição da circulação de pessoas, o produto deixou de funcionar. Sem alternativa, a startup decidiu reposicionar sua tecnologia de geolocalização como uma ferramenta de prevenção de fraudes.

“Como a nova solução é de prevenção a fraude, pudemos ajudar a antever como ela poderia ser recepcionada pelo sistema financeiro, que é um setor extremamente regulado e com diversas amarras”, diz Melo.

O advogado elogia os esforços do Banco Central para atualizar as regulamentações e permitir o uso de tecnologia no sistema financeiro. No caso específico da geolocalização, ele está otimista de que no futuro haverá uma recomendação do regulador indicando o uso de ferramentas desse tipo para a prevenção de fraudes.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

Qual é a diferença, na sua opinião, de ser gerente jurídico de uma startup e de uma empresa tradicional?

Acho que a principal diferença, e isso é uma coisa que me instiga bastante, é que as paredes não estão postas ainda. Todos os processos internos não estão mapeados e feitos, a nossa estratégia de negócio está sendo construída, então, acho que a chance de o ponteiro girar para um lado ou para o outro é muito alta. Eu diria que a maior diferença é essa: na startup, como somos um barquinho pequeno e não um navio, uma recomendação jurídica nossa consegue contribuir de forma muito mais ativa no direcionamento do negócio.

Outro ponto que eu destaco é o aprendizado de tecnologia. Na Incognia, o nosso modelo de negócios é bem inovador, então meu desafio não é só entender de Direito, eu preciso saber tanto da nossa tecnologia como da nossa indústria. Nesse mercado, as coisas mudam muito rápido, identidade digital não era um conceito conhecido há 10 anos, então precisamos aprender constantemente.

Poderia nos dar um exemplo de quando o jurídico conseguiu direcionar uma decisão de negócio da Incognia?

Eu vejo o jurídico hoje como um parceiro de negócios que vai tornar viáveis, de forma correta, com as proteções adequadas, os objetivos do negócio. Acho que nossa atuação junto ao sistema financeiro é um ótimo exemplo. A gente tem visto uma tendência dos tribunais de responsabilizar as instituições financeiras quando elas não adotam métodos adequados de prevenção à fraude. As instituições serem responsabilizadas não é algo novo, mas a ideia de que elas precisam ter mecanismos que identifiquem transações anômalas é, e a nossa tecnologia supre isso de uma forma muito adequada. A partir desse entendimento, eu, como jurídico, contribuo com a forma com que posicionamos nosso produto no mercado. Nosso papel também é trazer oportunidades e dizer “olha, isso aqui pode ser útil para o nosso discurso de venda do produto”.

Outro exemplo é a nossa expansão internacional, que é algo extremamente desafiador. A gente tem presença nos Estados Unidos, mas o nosso modelo de negócios não tem tantas fronteiras, até pela natureza do produto, então o jurídico atua muito próximo com o time de negócios para saber quais esforços tomar em relação a outras jurisdições. Uma coisa que fazemos bastante é buscar oportunidades regulatórias, como o Open Finance, que está começando a ser discutido na Europa.

O que te levou a querer trabalhar como advogado em uma startup?

Quando fui fazer Direito, a minha pretensão era ser um grande advogado de escritório. É algo que vem desde pequeno, lembro de brincar de tribunal em casa com meu pai e meu primo. Foi só na faculdade que o tema do Direito Digital me despertou curiosidade. Na época, ouvia alguns comentários sobre proteção de dados, ainda que a discussão fosse muito incipiente. Como Recife é um grande polo de tecnologia, com o Porto Digital, eu frequentava muitos eventos. Foi assim que percebi que eu queria direcionar a minha carreira para área de tecnologia. Eu nem via isso como uma transição tão abrupta assim, eu era um processualista, então pensava em trazer essa minha bagagem de Processo Civil para disputas envolvendo tecnologia.

A Inloco [antigo nome da Incognia] era um grande nome no Recife, por ser a primeira startup de lá que captou investimento com venture capital. Nessa época, eu admirava muito a empresa, mas como não havia nenhuma vaga por lá, decidi me capacitar para que, quando a posição abrisse, ela fosse minha. Então, comecei a fazer cursos relacionados a Direito e Tecnologia e, em 2019, consegui uma vaga de estágio.

Como foi a sua jornada na Incognia de estagiário para gerente?

Quando eu entrei tinha um foco bem grande em contratos e em propriedade intelectual. Com o tempo, isso foi se expandindo, mas eu diria que até hoje societário, contratos e propriedade intelectual são uma parte bem relevante do meu dia a dia. Em 2019, eu virei um analista júnior. Em 2021, mudei o nível de senioridade e, na mesma época, a minha gestora saiu. A decisão dos sócios foi a de me promover, então eu já fui de analista para coordenador, foi rápido. Lembro que o frio na barriga foi a primeira sensação que senti. Depois, veio a empolgação. Eu sempre fui muito confiante em relação à minha vida, as minhas entregas. Acho que quando o vácuo surge, é preciso preencher. Eu me sentia pronto, ainda que com um pouco de frio na barriga. Eu tive um apoio excelente internamente, os meus gestores me deram conforto e tempo para ir amadurecendo.

Quais foram seus principais desafios nessa época?

O meu grande primeiro desafio na função foi atuar na capitalização da empresa. Em 2022, nós tivemos a nossa primeira rodada de Venture Capital [após a mudança da marca], levantamos US$ 15 milhões com o fundo americano Point72 Ventures.

Muito do que é conduzir uma rodada de investimento é saber muito bem quem você é e o que está tentando vender. Então conhecer bastante a Incognia, por estar há 3 anos na empresa, me ajudou muito, mas foi a minha primeira grande negociação internacional e já em um negócio desse tamanho. Outro fator que também ajudou foi o fato de que eu interajo muito com os advogados e com o time de negócios dos nossos investidores, o que é uma fonte de aprendizado enorme.

Como é essa relação com os advogados dos fundos investidores?

Idealmente, o que os fundos de venture capital proporcionam para as empresas investidas não é só o investimento em si, mas também o conhecimento. Eu interajo muito com os nossos investidores, sobretudo por eles estarem distribuídos geograficamente pelo mundo e nós sermos uma empresa em expansão. Eu os procuro bastante para ter uma visão preliminar de pontos de atenção em determinada jurisdição e para conseguir indicações de outros parceiros.

Qual é o principal desafio do jurídico da Incognia hoje?

Temos alguns desafios conectados. Um deles é entender quais são os melhores caminhos para a nossa expansão global. É muito difícil eu estar aqui no Brasil, com o nosso time enxuto, direcionando uma empresa que está ganhando cada vez mais relevância nos Estados Unidos e começando a ter tração em outros continentes.

Na prática, para o jurídico, isso significa entender a legislação dos outros mercados, buscar oportunidades regulatórias e construir novos arranjos para os clientes. À medida que nos tornamos globais, precisamos aprender a tratar dados de acordo com as regras de cada região.

Durante a pandemia, a empresa precisou deixar para trás o modelo de negócio antigo e mudou a marca para Incognia. Como essas mudanças se refletiram no jurídico?

Acho que a mudança, de algum modo, pode até ter catalisado o meu aprendizado, porque precisamos criar um modelo de negócio novo do zero. Isso significa que a forma de construir o arranjo contratual da nossa solução precisou ser completamente diferente. Antes, o cliente era uma agência ou marca querendo se publicizar. Agora, a gente lida com o time de prevenção a fraude e cibersegurança das empresas. Os riscos que têm que ser alocados contratualmente são bem diferentes. Como mudamos a marca também, precisamos fazer todas as proteções.

Acho que o jurídico teve um papel muito importante nessa transição. Como a nova solução é de prevenção à fraude, pudemos ajudar a antever como ela poderia ser recepcionada pelo sistema financeiro, que é um setor extremamente regulado e com diversas amarras. A gente buscou entender, por exemplo, como a geolocalização era vista sob a ótica das regulações do Banco Central, para saber como usar a tecnologia da Incognia.

Tem um caso que eu acho muito interessante que é a comprovação de endereço. Qual é o método clássico? O cliente envia uma conta como comprovante de residência, que é algo burocrático para o cliente e vulnerável para o banco, já que é facilmente falsificável. Com ajuda dos clientes, a gente criou uma solução alternativa com base na geolocalização, sempre olhando para as resoluções do Banco Central.

É muito diferente hoje o que um banco precisa fazer para abrir uma conta do que precisava em 2018. Antes era super engessado. Hoje, desde que os métodos sejam efetivos, há muito mais flexibilidade para abrir uma conta. Eu sou muito elogioso da atuação do Banco Central, sobretudo no aspecto regulatório.

Esse auxílio jurídico, olhando para as regulações do mercado financeiro, foi solicitado antes do desenvolvimento do novo produto?

Foi feito com o carro andando. Era um processo simultâneo: o time de tecnologia trabalhando na solução e a gente olhando para as resoluções do Banco Central. As coisas foram feitas na velocidade de uma startup que lançou um novo negócio no meio da pandemia.

No caso do Brasil, você enxerga alguma oportunidade regulatória para a Incognia hoje?

Há uma tendência de geolocalização estar cada vez mais na boca do Banco Central e nas resoluções. O mercado, de modo geral, tem reconhecido a localização como um dos principais recursos para prevenção da fraude. Então, eu tenho expectativas de ver um estímulo cada vez maior ao uso de soluções como a da Incognia, que não causam atrito com o cliente. Eu acho que isso pode ser uma tendência. No regulamento do Pix, por exemplo, está que a experiência do usuário tem que ser sem fricção. Ter a experiência do usuário descrita como um aspecto regulatório eu acho muito interessante. Pode ser que vire uma tendência e que no futuro a gente tenha algo parecido para a prevenção de fraudes, com o Banco Central indicando o uso de geolocalização para prevenir fraudes.

Como o trabalho jurídico é dividido na Incognia?

A nossa opção, por enquanto, é manter uma estrutura bem enxuta no nosso jurídico. Temos basicamente eu e mais uma colaboradora que trabalha diretamente comigo, focada mais nesses temas de contrato, propriedade intelectual, governança, societário e regulação de tecnologia no geral. Nós trabalhamos bem próximos da área de proteção de dados, porque é uma parte fundamental do nosso produto.

Eu percebo que tem uma qualidade fundamental de um advogado interno que é o fato de a gente conseguir olhar um problema puramente jurídico e trazer toda a ótica do nosso produto e contexto de negócio. Então, atividades mais recorrentes e não tão associadas à estratégia da empresa, como registros em juntas, nós delegamos para escritórios. Na expansão internacional também trabalhamos com parceiros.

O que você busca quando vai contratar um escritório parceiro?

Acho que o primeiro ponto é ver o entusiasmo com quem eu estou conversando do outro lado sobre o que nós estamos tentando fazer. Primeiro, vejo se estou lidando com um escritório que me enxerga só como mais um cliente, ou que me enxerga como um cliente com muito potencial. Acho que esse é um primeiro ponto.

Naturalmente, a gente precisa ter confiança na técnica daquele escritório. Não precisa ser um escritório grande ou pequeno, mas é importante que tenha alguma reputação técnica.

O terceiro fator que consideramos é agilidade, sem dúvida. A gente se move muito rápido. Muitas vezes eu não preciso que o advogado me mande um memorando de 25 páginas explicando algo, sabe? Preciso de alguém que olhe meu produto, entenda a demanda e se comunique rápido. Pode até ser mandando bullet points do que podemos melhorar do ponto de vista legal.

Dentro do jurídico, vocês estão usando tecnologia no dia a dia?

Até por osmose, a gente usa muitas ferramentas de tecnologia para comunicação, consolidação de conhecimento e registro de reuniões. São ferramentas que incrementam a produtividade, mas que não são necessariamente relacionadas ao Direito. O nosso fluxo de trabalho é bem tecnológico e dinâmico, isso é uma das coisas que nos permite, com um time tão pequeno, fazer tanto.

Acho que [o uso de tecnologia] é uma tendência que só vai crescer, o mercado está amadurecendo bastante e novas soluções surgem a todo momento. A inteligência artificial está chegando com força. Hoje, nós já utilizamos algumas ferramentas de conteúdo sintético para ajudar com pesquisas e elaboração de conteúdo. Também utilizamos ferramentas de IA para gestão de contratos, o que nos ajuda, por exemplo, quando um executivo de vendas da Califórnia precisa localizar um contrato rapidamente. Nossa base precisa ser fácil e intuitiva para pessoas que não são do direito poderem usar.

Por fim, qual dica o senhor daria para um advogado que quer trabalhar em uma empresa de tecnologia?

A minha dica é: dedique energia ao que lhe encanta, porque as coisas vão fluir mais facilmente. Eu sempre falo para o meu time da importância da curiosidade. Faz toda a diferença para um advogado júnior, para um analista júnior, ser curioso. É algo que não demanda senioridade ou bagagem prévia, só precisa ser curioso. Isso destrava portas, porque é fundamental para um advogado corporativo e para um advogado dentro de uma startup sair do nosso núcleo do Direito. Eu interajo todo dia com cientistas de dados, vendedores, executivos, desenvolvedores de código. Para isso, é preciso ser entusiasta de tecnologia, para quando você precisar conversar com pessoas de tecnologia não ser algo entediante.

Um segundo ponto que eu considero crucial é conseguir absorver a linguagem de negócio mesmo, de métricas, estratégias, para poder conversar. Então, saber conceitos básicos de economia e negócios faz toda a diferença, mas não acho que é algo que necessariamente precisa ser estudado antes, pode ser absorvido no dia a dia.

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