Política

As relações entre Direito e Política

Vivemos tempos difíceis. Tempos de superficialidade exagerada, ou, como definiu Bauman, de amores líquidos.

Nos dias de hoje, raros são os casos em que se observa uma amizade duradoura e sincera ou um relacionamento intenso e sólido ao mesmo tempo. São tempos de larga mudança nos valores sociais. A sociedade passa por uma de suas mais bruscas mudanças.

A velocidade com que a informação flui no mundo moderno, torna cada dia mais complexa a manutenção do que conhecemos por relações humanas. Pessoas são tratadas como objetos. Ao não terem mais serventia simplesmente descarta-se o supérfluo.

Valores éticos e morais que perduraram por séculos, cito como exemplo a ética kantiana – sintetizada em seu imperativo categórico -, tornam-se cada vez mais inviáveis de serem postos em prática.

Não vemos mais romantismo, o que vemos é a banalização da palavra amor em favor dos vários tipos de experiências superficiais praticadas pelos indivíduos hodiernamente.

Bauman fala de forma brilhante que:

“Para ser feliz há dois valores essenciais que são absolutamente indispensáveis […] um é segurança e o outro é liberdade. Você não consegue ser feliz e ter uma vida digna na ausência de um deles. Segurança sem liberdade é escravidão. Liberdade sem segurança é um completo caos. Você precisa dos dois. […]

Hoje, o que vemos na sociedade é a valoração excessiva do “o que você é”, no lugar do “quem você é”. Tempos de relações imediatas, pautadas no momento e no que podemos obter com isso. O mediato não existe mais, apenas o agora. Isso se aplica em toda sociedade. Seja no critério profissional, pessoal ou interpessoal.

A cobrança do que se tem ofusca a expectativa do que se poderá ser. O amanhã não mais existe nos dias de hoje, apenas o agora. A fluidez em que o mundo está embebido trouxe consigo uma mudança permanente no modo como a sociedade se desenvolve, e, na maneira como ela se desenvolverá. Um dia, a história lembrará deste momento, de uma época na qual o homem não mais é o lobo do próprio homem – citando Hobbes – mas o homem tornou-se o fim em si mesmo. Estamos entrando na era do egocentrismo autofágico…!

As relações entre Política e Direito podem ser analisadas a partir de perspectivas muito diversas.

Pode-se pensar acerca das relações entre as instituições jurídicas (especialmente as judiciais) e as demais instituições que compõem a organização política de uma sociedade. Como se organiza o Poder Judiciário? Qual o seu papel na divisão dos poderes típicas dos Estados?

Essa preocupação pode assumir um enfoque diacrônico e nos conduzir à investigação do desenrolar histórico dessas conexões. Como as mudanças no direito influenciaram as mudanças nas demais estruturas políticas? E como as alterações na política contribuíram para as mudanças nas estruturas jurídicas?

Também podemos adotar um enfoque mais linguístico e investigar as diferenças entre os modos discursivos por meio dos quais essas instituições operam. Quais as diferenças entre o discurso político e o discurso jurídico? Em que medida um deles adota categorias desenvolvidas pelo outro? Que autonomia existe entre eles?

E, mudando da linguagem objeto para a metalinguagem, podemos analisar as diferenças epistêmicas entre a ciência do direito a ciência política. Quais são as peculiaridades dos discursos elaborados por juristas, cientistas políticos e filósofos? Que categorias eles utilizam? Que conhecimento a sua atividade é capaz de produzir?

O objetivo da disciplina Política e Direito é refletir acerca dessas questões, buscando estabelecer conexões e esclarecer disparidades entre os dois campos. A finalidade desse estudo é propiciar que os estudantes de ciência política desenvolvam uma melhor compreensão das instituições jurídicas brasileiras e das categorias que compõem o pensamento jurídico, tornando-se mais capazes de investigar o direito e de estabelecer diálogos produtivos com os juristas.

No Estado Absolutista, o Direito e a Política eram intrínsecos um ao outro. O rei, ao passo que exercia seus poderes políticos, tinha o poder legiferante e era o aplicador das normas. Depois do movimento constitucionalista, na França, com a mudança do domínio do poder (agora o povo é o seu detentor), percebeu-se que essa forma híbrida (siamesa) era totalmente prejudicial, já que implicaria na aplicação seletista do Direito – situando o termo, aqui, como sendo o conjunto de normas -. Enquanto a Política é permeada por vontades, o Ordenamento Jurídico não pode admiti-las, sob pena de incorrer no grave erro de desestabilizar a Ordem Constitucional. O poder do povo limita e ao mesmo tempo legitima o governante em seus atos. O surgimento da Política e do Direito não pode ser diferenciado neste e em qualquer outro trabalho.

Quando surgiu a Política? Aristóteles diz que ela é a arte e a ciência de governar a polis, pensamento que é o mais adequado, mesmo que seja o mais abrangente de todos. Dito isto, como se pode governar se não houver o Direito? Nem que ele seja próprio e arbitrário do governante, é existente. Contudo, quanto ao que é aplicado pode – e deve – ser questionado. O poder político, que em tese é exercido pelo povo, por vezes é desrespeitado pelo Governo.

Historicamente tivemos uma revolução elitista travestida de popular. Enquanto a burguesia ganhava força, o povo se sentia participante. A partir do momento em que o monarca francês viu-se sem alternativas, a não ser se render aos anseios da classe até então dominante (burguesia) e constituir uma ordem mista, onde a vontade do Soberano, enfraquecida pelo movimento burguês, se submeteu às pressões para cumprir essas novas garantias e fundamentos. A imposição da burguesia deixara clara a sua intenção, e o rei, ao ver o seu governo (política) enfraquecido, decide “trair” o seu povo entregando o Estado Francês aos vizinhos. Temos aí uma clara distinção e demonstração de tal diferença entre a Constituição de um Estado e sua política (quanto ao que é aplicado). Passada essa era percebemos que os países, cada vez mais, se estabilizam no Estado de Direito. Neste modelo, não há espaço para os desmandos políticos e nem para a imposição do próprio povo, que deve respeitar as normas constituídas. Uma vez instalada a Ordem Constitucional, o Poder Legislativo é legitimado para construir novas Leis e também encontra a sua própria limitação, não podendo ir contra a Magna Carta.

Os termos “direito” e “política” referem-se a conjuntos distintos de fenômenos, embora relacionados entre si. Desde o século XIX, em especial sob a influência de F. C. von Savigny e seus sucessores, tornou-se pronunciada a tendência, entre juristas, de se separar radicalmente o direito da política. Contudo, seria impossível tornar inexistentes as relações entre os fenômenos que cada um dos termos designa. As relações entre direito e política ocorrem no plano empírico de maneiras variadas, mas um ideal de subordinação da política ao direito tem sido cultivado desde tempos remotos.

Apesar de o direito pertencer à política, nem sempre isto ocorre para o bem. Muitos exemplos históricos podem ser encontrados em que o direito gerou sofrimentos, injustiças e males extremos. Assim a história registra situações em que o direito foi posto a serviço de ditaduras, nas quais a liberdade de expressão e a contestação política pacífica foram reprimidas violentamente. Mas há exemplos em que o uso do direito favorável à permanência de práticas opressivas adquire feições mais sutis. Um exemplo histórico pode ser encontrado na guinada do direito para o positivismo formalista, que muitos juristas promoveram diante do crescimento da democracia na virada do século XIX para o XX. Tal guinada sem dúvida ajudou a evitar que fossem introduzidas inovações nas instituições jurídicas, capazes de democratizar o direito.

Ora, conforme visto acima, sobrevindo, em finais do século XIX, o fracasso da promessa contida na ideia do “direito como emancipação”, e dada a multiplicação das contestações políticas da ordem institucional vigente, que camuflava hierarquias opressoras, muitos juristas se furtaram de contribuir com seus talentos intelectuais para construir uma ordem nova – a ordem de uma sociedade onde a liberdade fosse assegurada todos os indivíduos, com o auxílio do direito. Ao contrário, trabalharam para conservar a ordem posta.

Esse conservadorismo, em geral, buscou refúgio nos positivismos formalistas – tais como os elaborados por correntes ligadas à chamada Jurisprudência dos Conceitos, à Jurisprudência Analítica e a autores como Christopher C. Langdell e Hans Kelsen. As linhas de elaboração jurídica reconhecíveis por esses nomes praticaram o que Duncan Kennedy descreveu como “abuso da dedução”, que resultou de reducionismos formalistas extremados. Em todos esses casos, o direito permaneceu como uma instância técnica, pretensamente neutra perante a política. As construções dos juristas em todos esses casos eram vistas como assentada em fundamentos “científicos”, guardando assim um caráter técnico, e não político. A concepção do direito como uma atividade “técnica” lhe conferia uma aparente neutralidade perante a política e militava em favor do estabelecimento da precedência do trabalho do jurídico, de caráter científico e técnico, sobre a política como meio de determinação das normas de conduta válidas em qualquer sociedade. Foi até mesmo elaborada uma “teoria geral do direito”, com pretensa validade universal. Mas, com esses expedientes intelectuais, os juristas conservadores estavam, evidentemente, fechando a possibilidade de que os debates suscitados por de grupos insatisfeitos com a ordem vigente fossem considerados em seu mérito.

Uma importante manifestação do interesse de um jurista influente em fixar o entendimento de que o direito necessita ser considerado uma “ciência”, devendo ser separado da política e permanecer contraposto a ela, tinha aparecido com Friedrich Carl von Savigny (1779-1861). Valerá a pena discutir brevemente o argumento de Savigny, dada a grande influência de suas ideias sobre a cultura jurídica de muitos países, mesmo se tal influência tenha se dado por intermédio de formalizações de seu pensamento, introduzidas pela Jurisprudência dos Conceitos.

Antes de passar às ideias de Savigny sobre a contraposição entre direito e política, é preciso dizer algumas palavras acerca dos vínculos do direito com a racionalidade. Sobre isso vale a pena sublinhar que, por suas relações com a esfera do λογος desde a Antiguidade, o direito, enquanto jurisprudentia, sempre manteve ao menos algum distanciamento em relação senso comum.

O direito desde o início exigia do jurista um treinamento em habilidades intelectuais especializadas. Na Idade Média, no continente Europeu, o ensino do direito demandava esforços de professores e estudantes nas áreas de competência relacionadas às disciplinas do trivium e ainda, evidentemente, familiaridade com os textos da Codificação de Justiniano (no caso do direito civil) e com textos autorizados da tradição dos “cânones” da Igreja (no caso do direito canônico).

Contudo, o advento da revolução científica do século XVII e o prestígio adquirido pelo empreendimento intelectual da física de Newton, que recebeu o beneplácito da filosofia kantiana, abriram a oportunidade para que o direito renovasse as bases de seus vínculos com a racionalidade. O primado da filosofia do direito natural nos séculos XVII e XVIII tornou palatável a construção de sistemas normativos fundados na metafísica. Mas a perspectiva kantiana tornou atraente a opção de se construírem conhecimentos de modo a evitar que eles fossem frouxamente inferidos da especulação filosófica mais ou menos indisciplinada ou separada de esforços metodológicos destinados a dar precisão e renovação às formulações que pudessem ser qualificadas como racionais. A obra de Savigny se inscreve nesta perspectiva, influenciada pelo programa kantiano e suas ideias afastam o direito da política e da democracia. Talvez por isso elas tenham-se tornado atraentes para os políticos e intelectuais que se preocupavam com o crescimento da social-democracia na Alemanha, na segunda metade do século XIX.

Em sua famosa obra Da Vocação do Nosso Tempo para a Legislação e a Jurisprudência, publicada em 1814, e em outros escritos Savigny argumentou que o direito, em sua realidade institucional, que ele considerava passível de ser satisfatoriamente descrita pela pesquisa histórica, não é algo político, mas sim social. De acordo com Savigny, o direito, refletido em condutas e relações espontâneas entre pessoas, existe de maneira imanente na “consciência comum do povo” (das gemeinsame Bewußtsein des Volkes). Corresponde ao costume socialmente gerado e isento de arbitrariedades. O direito é, portanto, na ótica de Savigny, formado de regras de conduta a que o povo de uma nação adere de bom grado e espontaneamente, sem que haja arbitrariedades ou situações opressão. Diz ainda Savigny que pertence ao jurista, equipado com sua “ciência jurídica” – e não aos políticos nos parlamentos – determinar o que o direito é, quais as suas características, quais as suas partes mutuamente articuladas. Somente o jurista, e mais ninguém, é capaz de conhecer no detalhe e globalmente o que o direito é. Com isso, Savigny defendeu a precedência do direito (a ciência jurídica – Rechtswissenschaft) sobre a deliberação política, que, na segunda metade do século XIX passaria por um processo mudança com a expansão da representação democrática. Savigny ainda defendeu que, enquanto estrutura normativa e social de origem “invisível”, mas que se torna conhecível pelo jurista praticante da ciência jurídica, o direito forma um “sistema” coerentemente concatenado.

Essas ideias de Savigny, que se tornaram enormemente influentes, são até hoje de um modo ou de outro instiladas na mente de estudantes nas faculdades de direito no Brasil e em outros países. Daí as queixas como a de Luciano Oliveira, que reclama da insistência de juristas brasileiros em citar, até levianamente e com distorções, origens antigas de instituições jurídicas contemporâneas. Além disso, tendo as ideias de Savigny sido submetidas a um processo de formalização por via da Jurisprudência dos Conceitos, outro vício advindo de Savigny e seus sucessores é o extremado formalismo, de caráter autor referenciado, característico do trabalho jurídico em países como o Brasil. Tal formalismo aliena o direito da parte da política engajada em buscar modos de mudar a ordem posta e substituí-la por outra, que possa ser considerada mais justa.

O Estado, segundo preconiza Jorge Miranda e diversos outros autorizados no tema, não existe em si ou por si; existe para resolver problemas da “sociedade, quotidianamente;

Existe para garantir segurança, fazer justiça, promover comunicação entre os homens, dar-lhes paz e bem-estar e progresso. É um poder de decisão no momento presente, de escolher entre opções diversas, de praticar os atos pelos quais satisfaz pretensões generalizadas ou individualizadas das pessoas e dos grupos. É autoridade e é serviço”.

É nesse sentido que esse mesmo autor propugna que o Estado não pode viver à margem do Direito porque atua por meio de processos e procedimentos jurídicos e legitima sua competência também por meio dele. Nem ao menos se poderia coerentemente falar em Estado sem pressupor o Direito, embora este sempre sirva de baliza àquele.

Na visão de Kelsen, entre direito, política, moral, psicologia e sociologia haveria uma estreita conexão que estaria impingindo aos Tribunais no decurso dos séculos XIX e XX uma confusão absurda entre aquelas searas de uma e outra ciência. Kelsen não negava a aproximação e a interpermeação entre política e direito e deste com a moral ou outras áreas do conhecimento humano, mas deixava clara a separação não distanciada, a diferença necessária que pretendia estabelecer. A política estaria sujeita a critérios, de legitimação, diferentes daqueles direitos; não há um parâmetro racional de operação na política. O que é inadmissível no sistema jurídico luhmanniano.

Niklas Luhmann, desde uma visão projetada inicialmente por T. Parsons, empregou o raciocínio lógico kelseniano para diferenciar direito e política. O autor alemão buscou incansavelmente a redução de complexidade social por meio de uma teorização da sociedade.

Ele a reduz a subsistemas sociais auto-referentes, autopoiéticos, auto-reprodutivos, abertos apenas cognitivamente, ou seja, fechados, mas sensíveis a perturbações do meio (a sociedade).

Na teoria sistêmica luhmanniana, política e direito consubstanciam-se em dois subsistemas sociais funcionalmente diferenciados. Inobstante, acoplados estruturalmente por uma Constituição. Nessa leitura, a Constituição não seria elemento nem de um, nem de outro sistema, senão um elemento social que permite a comunicação entre eles. Seria o filtro por meio do qual o direito perceberia a alteração do meio (sociedade) pela política e vice-versa.

A Justiça, enquanto mera fórmula de contingência, também não pertenceria ao sistema jurídico, nem ao sistema político. As operações observam sua pertença ou não ao sistema, distinguindo-se entorno (sociedade) e sistema e, com isso, atualizando a autorreferência. Admitida a observação como operação interna do sistema e diante da impossibilidade da auto-observação pelo próprio observador, torna-se necessária uma observação de segunda ordem, feita desde critérios também internos ao sistema, num círculo observatório que busca embasamento em suas observações anteriores: Autorreferência.

A observação (e o observador) somente tem acesso a si mediante um paradoxo. A unidade de um código somente se poderia representar como paradoxo, o qual poderia ser empregado de diversos modos. Por exemplo, a observação de segunda ordem. Desse modo, o paradoxo em si permanece invisível: o operador/observador observa outras questões, permitindo a auto-reprodução do sistema como um todo, mas ocultando a impossibilidade de, individualmente, uma operação se converter em objeto de observação por ela mesma: ponto cego do sistema luhmanniano.

A distinção programação/codificação permite tecnificar o código, reduzindo-o a uma troca dos valores. O código do direito seria lícito/ilícito, conforme/desconforme, o qual não se confunde com o código da política, cujos signos opositores se fundariam em legitimo/ilegítimo, por exemplo.

Na teoria sistêmica de Luhmann, assim como na Teoria Pura do Direito, de Kelsen, não há espaço, dentro do sistema jurídico, para questões cujas soluções não possam objetivamente ser alcançadas. O Direito, enquanto sistema funcionalmente determinado pela estabilização de expectativas nórmicas (contrafáticas), não absorve questões que não digam diretamente com conflitos sociais sujeitos às expectativas fixadas nas normas jurídicas.

Portanto, questões como a do conteúdo da justiça e a das normas perde aplicação prática, porque não pode ser admitida como elemento do código (conforme/desconforme), nem pode designar um programa. A justiça não responde ao código lícito/ilícito, não tem, desse modo, o condão de abalar o sistema jurídico. Ser justo é uma pretensão que o sistema jurídico pretende atender por meio da estabilização das expectativas. Entretanto, os critérios e os conteúdos dessa qualidade são questões que responderiam a códigos éticos e não jurídicos.

O sistema jurídico luhmanniano se pretende a si mesmo como justo.

A justiça é compreendida pelo sistema como interna, sob a forma de norma (sujeita a decepções, portanto). Assim, é possível sistemas jurídicos injustos. Nem a autopoiese operativa, nem o código invariável (necessariamente) respondem ao questionamento de justiça.

Enquanto norma de contingência, o sistema se acredita justo, mas a injustiça não invalida seus códigos ou elementos.

O conteúdo substantivo de Justiça é relegado para searas diversas do direito, como a filosofia ou a ética, na qual se situa a política, por exemplo. Não é ela um critério jurídico, nem mesmo parte do código que determina a pertença ou não de certo dado ou elemento ao sistema jurídico.

Segundo Ovídio Baptista, os dois principais compromissos ideológicos que percorrem a compreensão contemporâneo acerca do Direito e da função do Poder Judiciário, se revelam por, através da submissão do juiz às leis, significando a impossibilidade de atribuição de sentido pelo magistrado, que somente pode-se valer da técnica de aplicação na tomada da decisão.

Ativismo pseudo-passivo

Na sociedade moderna, especialmente no Estado Democrático de Direito, a figura do legislador está diluída em um ou vários corpos legislativos, com membros eleitos pelo voto direto e representantes legítimos da vontade popular. Esta é uma maneira formalista, institucional e simplória de enxergar a realidade política. A teoria jurídica trata majoritariamente do Direito posto, norma já emanada da vontade do legislador formal institucionalizado. O processo de formação do Direito é relegado nos estudos jurídicos, exatamente por se tratar de processo político, característico de um momento pré-jurídico. Estudam-se as regras para a eleição dos membros do legislativo e o procedimento formal de proposição, votação e promulgação das leis, mas não se discute a maneira como se chega ao seu conteúdo. Então, do ponto de vista do conteúdo, quem é o legislador? Queremos saber aqui quem é o legislador de fato. Ensina ROBERTO AGUIAR que “quem legisla é o grupo social que detém o poder, por deter o controle da vida econômica e consequentemente política de uma sociedade. O grupo social ou grupos sociais no poder se instauram como legisladores”. A posição desses grupos na sociedade permite que eles tenham uma grande influência no todo de duas formas. A primeira como formadores de opinião, usada para difundir uma visão de mundo e uma ideologia própria deste grupo, e a segunda como agentes econômicos, usada em financiamentos de campanha, que acabam transformando os ditos representantes do povo em porta-vozes de seus interesses. Toda essa ação não é realizada às claras, de forma aberta e transparente. Vários subterfúgios são usados para mascará-la, sendo o principal, na minha opinião, o que chamo de personalização das instituições. O que vem a ser isso? O tempo todo vemos e ouvimos frases do tipo: esse é o desejo da sociedade, a posição da OAB reflete isso ou aquilo, a igreja não concorda com essa medida, o Estado isso, o Governo aquilo, a mídia, a Associação comercial, a Federação das Indústrias, e assim por diante. É como se essas instituições ganhassem vontade própria, quando na verdade elas refletem um jogo político interno que, no mais das vezes, representa interesses de um determinado grupo dominante ou até mesmo de uma pessoa. Friso aqui com veemência que não sou contra as instituições e o papel importantíssimo que desempenham, estou apenas apontando um aspecto de seu uso com o qual não concordo. O pior de tudo é que estes grupos dominantes, tradicionais e conservadores, que tem o poder de influenciar a formação do Direito a ponto de quase determiná-lo inteiramente, quando virada a página da formação para a da aplicação do Direito, se tornam os grandes legalistas estritos, defensores da neutralidade, propagadores de todos aqueles mitos tratados no capítulo segundo. Não é novidade que os “ricos e poderosos sempre usufruíram de vantagens substanciais (…) e tratamento superior por parte do Direito”. O Direito é um dos principais campos de atuação das elites na intenção de se manterem elites e, consequentemente, continuarem a usufruir de privilégios. As elites usam seu poder para influenciar na formação do Direito, como vimos, mas também exercem o mesmo poder para manter uma ideia, um certo conceito de Direito viva. Os principais campos dessa atuação são as faculdades de Direito, em especial as mais tradicionais, por possuírem uma maior influência no meio jurídico em geral, e, principalmente, na formação dos profissionais que irão compor uma “nobreza togada”. Não há nada de mais em um determinado grupo social agir em busca e na defesa de seus interesses, mas fazê-lo hipocritamente como se estivessem agindo sem interesse ou no interesse de todos é cinismo, é um ativismo pseudo-passivo. È a maneira como atuam nesta empreitada que preocupa. Se são legítimos seus interesses por que se escondem atrás de uma aura de neutralidade e hipocrisia?

Fica clara a supremacia do Direito Constitucional, assumindo a Constituição a hierarquia do ordenamento jurídico e, assim, ditando as regras para todos os outros ramos. Com o avanço da sociedade, com relações complexas e plurais, o eixo do sistema jurídico deslocou-se do Código Civil para a Constituição Federal. As cartas modernas, tal como a Brasileira de 1988, disciplina matérias antes exclusivas do Direito Privado, além de conter princípios que iluminam todo o ordenamento.

Assim o é na Europa desde o início do Séc. XX, com o avanço do Estado sobre as atividades econômicas e quando este regula as relações vigentes, abandonando as antigas convicções liberais de não intervenção, como já amplamente exposto. O que se conclui é que este movimento tem grandes consequências jurídicas e a Constituição como documento político e um quase programa de Estado ganha peso nesta nova visão. O Estado de Bem-Estar Social, proposto por Keynes e generalizado em todos os países do capitalismo central, é a fonte última desta mudança de postura.

No Brasil, com a defasagem habitual em relação às mudanças no mundo, esta realidade só é finalmente sentida com o advento da Constituição de 1988, que plenamente incorpora todos os preceitos do Estado de Bem-Estar Social, ainda que seja do ponto de vista programático, mesmo que na prática o país continue como nação pobre, sem atendimento das condições mais elementares da população mais carente.

No entanto, juridicamente, ou melhor, constitucionalmente, aponta-se para direção que seguiram as grandes nações do mundo desenvolvido. Todas estas polêmicas não surpreendem, pois na realidade elas refletem o nível de consciência da sociedade, bem como o velho problema cultural, a falta de coesão e projeto de país. Mesmo as mentes acadêmicas brilhantes estão arraigadas a um modelo de desenvolvimento e práticas política, cultural e jurídica ainda dos séculos passados. Nada admitiria uma mudança de tal monta, sem a resistência, consciente ou não, daqueles que detêm o poder, as decisões de Estado, a administração da justiça etc.

Conclui-se assim que as condições econômicas e políticas de cada época da humanidade determinam como o Direito é escrito, a quem ele serve ideologicamente e quais são as possibilidades de se usar as contradições sociais pra se avançar rumo a uma sociedade mais justa, humana e igualitária.

As zonas de certeza nas quais o advogado atua são, geralmente, cálculos aproximados de risco. O advogado não é um matemático. O direito não é uma ciência natural, mas social, e, como tal, submete-se a contingências e fatores dinâmicos e imprevisíveis. A simples leitura da lei não permite necessariamente que se chegue a um resultado óbvio como em geral se espera do direito. O direito tem zonas de incerteza, e o advogado atua administrando essa incerteza. A atividade jurídica é, nesse aspecto, muito similar à de um gestor de riscos. Pois, se a política é a arte do possível, o direito, de certa forma, também.

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